quarta-feira, maio 23, 2007

O riso

Para um sorriso que não conheço por inteiro e que suponho intenso, cuja dona aniversaria essa semana e com quem já compartilho algumas "curiosidades" no caminho, em tão pouco tempo de diálogo, Camila "Menina Rosa", "Manga" Rosa.

O riso


O morcego, pendurado em um galho pelos pés, viu que um guerreiro kayapó se inclinava sobre os mananciais.

Quis ser seu amigo. Deixou-se cair sobre o guerreiro e o abraçou. Como não conhecia o idioma dos kayapós, falou ao guerreiro com as mãos. As carícias do morcego arrancaram do homem a primeira gargalhada. Quanto mais ria, mais fraco se sentia. Tanto riu, que no fim perdeu todas as suas forças e caiu desmaiado.

Quando se soube na aldeia, houve fúria. Os guerreiros queimaram um montão de folhas secas na gruta dos morcegos e fecharam a entrada.

Depois, discutiram. Os guerreiros resolveram que o riso fosse usado somente pelas mulheres e as crianças.

Eduardo Galeano, Memória do Fogo I - Os nascimentos.

[Fonte: Claude Lévi-Strauss. Lo crudo e lo cocido. (MItologicas, I). México, FDE, 1978.]

terça-feira, maio 22, 2007

De um irlandês genial

O Bocas do Tempo nasceu para dar vez a autores de nuestra Latinoamérica. Porém, como regras - ou a maioria absoluta delas, pelo menos - existem para as quebrarmos, abro espaço para um irlandês socialista, homossexual e genial como poucos na literatura.

Dedico ao amigo-irmão Jonas, valente sempre.


"Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquetipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.

A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.

Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco. Quero-os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.

Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta. Não quero só o ombro ou o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto não sabe sofrer junto.

Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.

Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice. Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto. E velhos, para que nunca tenham pressa.

Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril".

Oscar Wilde

domingo, maio 06, 2007

Os filhos

Li o texto abaixo pela primeira vez num ônibus da Itapemirim que cortava o mapa do Brasil, em algum lugar entre São Luís e São Paulo, em 2002.

Meus olhos se transformaram em cachoeira nas últimas frases. Comoção mista de alegria, surpresa, tristeza e vontade de ter uma criança pra dar o carinho de pai. Até hoje, me emociono a cada vez que releio.

Ontem conversei rápido, num chat, com Fábio Marcelo, cearense que mora em Palmas(TO) há mais de década. Estudamos no segundo ano do Lourenço Filho, em Fortaleza, 1993. Mantivemos contato, embora com alguns hiatos no caminho, e a amizade firme. Fábio é daqueles amigos cuja lembrança me deixa leve, pelo bom humor, sinceridade e serenidade. O contato é pequeno, mas a admiração - mútua, tenho certeza - é grande.

Tem duas paixões na vida: Cristiane, esposa, e a filha Giovana. Na rápida conversa ontem, ele me deu uma notícia que vale uma vida, literalmente. Nascida em setembro de 2006, com síndrome de Down, Giovana tinha um problema no coração. Numa cirurgia delicada, realizada no Hospital do Coração, em São Paulo, o problema foi corrigido e Giovana não corre mais risco de vida. Acordei e essa imagem - a felicidade sem tamanho do Fábio e sua família - veio à mente e lembrei desse texto, que dedico a eles.

Os filhos

Há onze anos, em Montevidéu, eu estava esperando Florência na porta de casa. Ela era muito pequena: caminhava como um ursinho. Eu a encontrava pouco. Ficava no jornal até qualquer hora e pela manhã trabalhava na Universidade. Beijava-a adormecida; às vezes levava chocolate ou brinquedos para ela.

A mãe não estava, aquela tarde, e eu esperava na porta o ônibus que trazia Florência do jardim-de-infância. Chegou muito triste. No elevador fez beicinho. Depois deixou que o leite esfriasse na xícara. Olhava o chão.

Sentei-a em meus joelhos e pedi que me contasse. Ela negou com a cabeça. Acariciei-a, beijei sua testa. Deixou escapar uma lágrima. Com o lenço sequei sua cara e assoei seu nariz. Então, pedi outra vez:

- Vamos, conta.

Contou-me que sua melhor amiga tinha dito: "Eu não gosto mais de você". Choramos juntos, os dois abraçados, ali na cadeira.

Eu sentia as mágoas que Florência ia sofrer pelos anos afora e quisera que Deus existisse e não fosse surdo, para poder rogar que me desse toda a dor que tinha reservado para ela.


Eduardo Galeano, Dias e noites de amor e de guerra.

O guayacán

A trilogia Memória do Fogo é uma leitura imprescindível para qualquer pessoa que tenha afinidade, curiosidade ou vontade de conhecer a história e um pouco da cutura da América Latina. Depois de As veias abertas da América Latina, os três volumes - que compõem um conjunto harmônico entre si - da trilogia são que esbofetearam com mais força a minha ignorância e a minha (in)sensibilidade condicionada pela nossa educação formal.

Dedico o texto abaixo à jovem Guaia, estudante e militante da UnB.

O guayacán

Andava em busca de água uma moça do povo dos nivakle, quando encontrou-se com uma árvore fornida, Nasuk, o guayacán, e sentiu-se chamada. Abraçou seu tronco firme, apertando-o com todo o corpo, e cravou suas unhas na casca. A árvore sangrou. Ao despedir-se, ela falou:

- Como eu gostaria, Nasuk, que fosses homem!

E o guayacán fez-se homem e foi buscá-la. Quando a encontrou, mostrou-lhe as costas arranhadas e estendeu-se ao seu lado.

Eduardo Galeano, Memória do Fogo I - Os nascimentos.
(Fonte: Roa Bastos, Augusto (comp.), Las culturas condenadas, México, Siglo XXI, 1978).

quinta-feira, maio 03, 2007

A linguagem

Um pouco sobre a hipocrisia da linguagem dominante. "Mude a forma através da qual as pessoas pensam e você mudará o mundo", acho que ouvi no filme "Um grito de liberdade", sobre a história de Steve Biko, uma das minhas principais referências políticas.

O poder da ideologia é exatamente esse. Mudar a forma de pensar da sociedade. O primeiro passo é dominar a linguagem. Controlar o ato arbitrário de dar nome às coisas e aos fatos. Chamar de guerra a invasão de um país, como ocorreu no Iraque e Afeganistão, só para reduzir a lista aos mais recentes. Classificar de baderna ou até de terrorismo as ações políticas reivindicatórias de direitos, como a nossa grande (e fascista) mídia faz com os movimentos sociais.

Galeano fala melhor sobre isso. Ofereço à amiga Natasha, (quase) nutricionista que não conhecia Galeano, mas se interessa pelo desmascaramento da hipocrisia que nos aprisiona.

A linguagem/1

As empresas multinacionais são assim chamadas porque operam em muitos países ao mesmo tempo, mas pertencem a poucos países que monopolizam a riqueza, o poder político, militar e cultural, o conhecimento científico e a alta tecnologia. As dez maiores multinacionais somam atualmente uma receita maior do que a de cem países juntos.

Países em desenvolvimento é o nome pelo qual os entendidos designam os países subordinados ao desenvolvimento alheio. Segundo as Nações Unidas, os países em desenvolvimento enviam aos países desenvolvidos, através de desiguais relações comerciais e financeiras, dez vezes mais dinheiro do que aquele que recebem através da ajuda externa.

Ajuda externa é o nome do impostinho que o vício paga à virtude nas relações internacionais. A ajuda externa é distribuída de tal maneira que, em regra, confirma a injustiça, raramente a contradiz. A África negra, em 1995, acumulava cerca de setenta e cinco por cento dos casos de Aids no mundo, mas recebia só três por cento dos fundos distribuídos pelos organismos internacionais para a prevenção da peste.

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A linguagem/2

Em 1995, a imprensa argentina revelou que alguns diretores do Banco da Nação tinham recebido trinta e sete milhões de dólares da empresa norte-americana IBM, em troca de uma contratação de serviços cotados 120 milhões de dólares acima do preço normal.

Três anos depois, esses diretores do banco estatal reconheceram ter embolsado e depositado na Suíça tais vinténs, mas tiveram o bom gosto de evitar a palavra suborno ou a grosseira expressão popular coima: um deles usou a palavra gratificação, outro disse que era uma gentileza e o mais delicado explicou que se tratava de um reconhecimento da alegria da IBM.

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A linguagem/3

Na era virotiana, era proibido fazer menção às calças na presença de uma senhorita. Hoje em dia, não fica bem dizer certas coisas perante a opinião pública:

o capitalismo exibe o nome artístico de economia de mercado;

o imperialismo se chama globalização;

as vítimas do imperialismo se chamam países em vias de desenvolvimento, que é como chamar meninos aos anões;

o oportunismo se chama pragmatismo;

a traição se chama realismo;

os pobres se chamam carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos;

a expulsão dos meninos pobres do sistema educativo é conhecida pelo nome de deserção escolar;

o direito do patrão despedir o trabalhador sem indenização nem explicação se chama flexibilização do mercado de trabalho;

a linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os direitos das minorias, como se a metade masculina da humanidade fosse a maioria;

em lugar de ditadura militar, diz-se processo;

as torturas são chamadas constrangimentos ilegais ou também pressões físicas e psicológicas;

quando os ladrões são de boa família, não são ladrões, são cleptomaníacos.


Eduardo Galeano. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso.