O futebol em si é apenas um jogo. A riqueza dele, o que o torna apaixonante e mobilizador de milhões, reside na metáfora - ou melhor, nas metáforas - para a vida.
Por isso minha paixão futebolística supera e muito minha paixão clubística. Transformar o amor ao jogo em amor exclusivo ao clube é ato de estupidez e cegueira. Pequenez mesmo.
"Futebol ao sol e sombra", do Galeano, é, de longe, o melhor livro sobre futebol que li até hoje, afora os de Nélson Rodrigues, que é hour concour. E não foram poucos. Outros bem interessantes foram "Como o futebol explica o mundo", do jornalista estadunidense (!) Franklin Foer, e "Futebol e guerra", do inglês Andy Dougan. O primeiro traça alguns paralelos entre a globalização e o mundo da bola. O segundo conta a épica história de resistência do Dínamo de Kiev na Ucrânia ocupada pelos nazistas na Segunda Guerra - história, aliás, contada por Galeano no seu opúsculo sobre o "esporte das multidões". Fico devendo aqui.
Há até um recente site "Livros de futebol". Os dois acima não estão no catálogo, ainda.
Segue trecho do artigo "Coisas raras", publicado pelo Galeano na excelente Fórum.
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Não é um milagre químico. Estão dopados pelo entusiasmo e pela alegria. Melhor dito: dopadas. Os onze jogadores de cada equipe são muito mais que onze. Melhor dito: as onze jogadoras. Neles, joga uma multidão. Melhor dito: nelas. Estes são rituais de afirmação dos humilhados. Melhor dito: das humilhadas.
Pouco a pouco, o futebol das mulheres vem ganhando espaço nos meios dedicados à difusão desse esporte de machos para machos, que não sabe o que fazer com esta imprevista invasão de tantas senhoras e senhoritas.
A nível profissional, o desenvolvimento do futebol feminino encontra, hoje em dia, certa ressonância. Mas não encontra eco nenhum, ou desperta ecos inimigos, no jogo que se pratica pelo puro prazer de jogar.
Na Nigéria, a seleção feminina é um orgulho nacional. Disputa os primeiros lugares no mundo. Mas no norte muçulmano os homens se opõem, porque o futebol convida as donzelas à depravação. Mas terminam por aceitá-lo, porque o futebol é um pecado que pode outorgar fama e salvar a família da pobreza. Se não fosse pelo ouro que promete o futebol profissional, os sacerdotes proibiriam essas roupas indecentes impostas por um satânico esporte que deixa as mulheres estéreis, por lesão do jogo ou castigo de Alá.
Em Zanzibar e no Sudão, os irmãos varões, guardiões da honra da família, castigam com surras esta louca mania de suas irmãs que se crêem homens capazes de chutar uma bola, e que cometem o sacrilégio de descobrir o corpo. O futebol, coisa de machos, nega às mulheres campos de entretenimento e de jogo. Os homens se negam a jogar contra as mulheres. Por respeito à tradição religiosa, dizem. Pode ser. Além disso, ocorre que a cada vez que jogam, perdem.
Na Bolívia, do outro lado do mar, não há problema. As mulheres jogam futebol, nos povos do altiplano, sem desnudar suas numerosas polleras. Vestem por cima uma camiseta de cores e sem demora põem-se a fazer gols. Cada partida é uma festa. O futebol é um espaço de liberdade aberto às mulheres cheias de filhos, oprimidas pelo trabalho escravo na terra e nos teares, submetidas às freqüentes surras de seus maridos bêbados. Jogam descalças. Cada equipe triunfante recebe de prêmio uma ovelha. A equipe derrotada, também. Estas mulheres silenciosas riem às gargalhadas por toda a partida e depois seguem morrendo de rir por todo o banquete. Festejam juntas, vencedoras e vencidas. Nenhum homem se atreve a meter o nariz.
Eduardo Galeano