quarta-feira, outubro 11, 2006

A pequena morte

Não nos provoca o riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer é uma alegria que dói. Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar-nos faz por juntarmo-nos, e perdendo-nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia. Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce.

Eduardo Galeano, O livro dos abraços - que acabou de ganhar edição de bolso, mais atraente para os bolsos.

Para Maria Raquel, com sabor de um ano.

terça-feira, outubro 10, 2006

Descobrindo a América (1)

Não nascemos na Lua, não moramos no sétimo céu. Temos a alegria e a desgraça de pertencer a uma região atormentada do mundo, a América Latina, e de viver num tempo histórico que nos golpeia com força e dureza. As contradições da sociedade de classes são, aqui, mais ferozes que nos países ricos. A miséria generalizada é o preço que os países pobres pagam para que seis por cento da população mundial possa consumir impunemente a metade da riqueza gerada pelo mundo inteiro. É muito maior a distância, o abismo, que se abre na América Latina entre o bem-estar de poucos e a desgraça de muitos; e são mais selvagens os métodos necessários para manter essa distância intocada.

[...]

Para os povos cuja identidade foi quebrada pelas sucessivas culturas da conquista e cuja exploração impiedosa serve ao funcionamento da maquinaria do capitalismo mundial, o sistema gera uma "cultura de massa". Cultura para massa, deveríamos dizer, definição mais adequada a esta arte degradada de circulação massiva que manipula as consciências, oculta a realidade e esmaga a imaginação criadora. Não serve, certamente, à revelação da identidade, já que é um meio de apagá-la ou deformá-la, para impor modos de vida e pautas de consumo que se difundem massivamente através dos meios de comunicação.

Chama-se "cultura nacional" a cultura da classe dominante, que vive uma vida importada e se limita a copiar, com mau gosto e falta de jeito, a chamada "cultura universal" ou o que por isso entendem os que a confundem com a cultura dos países dominantes.

Em nosso tempo, era dos mercados múltiplos e das corporações multinacionais, internacionalizou-se a economia e também a cultura, a "cultura de massa", graças ao desenvolvimento acelerado e à difusão massiva dos meios. Os centros de poder nos exportam máquinas e patentes e também ideologia.

Se na América Latina o gozo dos bens terrenos está reservado a poucos, é preciso que a maioria se resigne a consumir fantasias. Vendem-se ilusões de riqueza aos pobres e de liberdade aos oprimidos, sonhos de triunfo aos vencidos e de poder aos fracos. Não é preciso saber ler para consumir as apelações simbólicas que a televisão, o rádio e o cinema difundem para justificar a organização desigual do mundo.

Eduardo Galeano, A descoberta da América (que não houve).

Para Julya, outra apaixonada por Nuestra America, que me encomendou um artigo sobre Galeano, para uma revista laboratório da UFPE, e atrasei até onde minha falta de vergonha suportou... (risos)