domingo, agosto 26, 2007

Cinco mulheres

Esta crônica foi lida pelo Marcelo Arruda no sarau do meu aniversário. Ontem, ao final de um curso da Abrandh com pessoas do Brasil inteiro, maioria absoluta de mulheres militantes da segurança alimentar e nutricional, do movimento sanitarista, do movimento negro e outros, li o texto.

Uma pequena homenagem às cinco mulheres que trabalham cotidianamente comigo na Abrandh e com as quais aprendo bastante, sobretudo. E também uma homenagem às briosas militantes que participaram do curso.

E agora, enquanto escrevo, converso com a querida amiga alagoana-paulistana Maria "quase National Geographic" Catharina, a quem também dedico estas linhas do Galeano.

Cinco mulheres

O inimigo principal qual é? A ditadura militar? A burguesia boliviana? O Imperialismo? Não, companheiros. Eu quero dizer só isso: nosso inimigo principal é o medo. Temos medo por dentro.

Só isso disse Domitila na mina de estanho de Catavo e então veio para La Paz, a capital da Bolívia, com outras quatro mulheres e uma vintena de filhos. No Natal começaram a greve de fome. Ninguém acreditou nelas. Vários acharam que esta piada era boa:

Quer dizer que cinco mulheres vão derrubar a ditadura?

O sacerdote Luis Espinal é o primeiro a se somar. Num minuto já são mil e quinhentos os que passam fome na Bolívia inteira, de propósito. As cinco mulheres, acostumadas à fome desde que nasceram, chamam a água de franco ou peru, de costeleta o sal, e o riso as alimenta.

Multiplicam-se enquanto isso os grevistas de fome, três mil, dez mil, até que são incontáveis os bolivianos que deixam de comer e deixam de trabalhar e vinte e três dias depois do começo da greve de fome o povo se rebela e invade as ruas e já não há como parar isso.

Em 1978, as cinco mulheres derrubam a ditadura militar.

Eduardo Galeano, Memória do Fogo III - O século do vento

PS: Para quem acredita que este é um texto de ficção, recomendo a leitura desta notícia.

PS2: Saudação especial à amiga e conterrânea Selma, que me falou do Se me deixam falar, livro de Moema Viezzer a partir de depoimentos de Domitila Chungara, mulher
"pobre, descendente de indígenas, esposa de um minerador, tudo isso durante a ditadura militar no interior da Bolívia".

PS3: Aceito o livro de presente (o Dia das Crianças está chegando...)

PS4: ACHEI O LIVRO NUM SEBO VIRTUAL (www.estantevirtual.com.br) POR R$ 4,00 (sim, quatro reais mesmo!!) e já li. FODÁSTICO!! Em breve escreverei a respeito.

segunda-feira, agosto 20, 2007

A personificação da dignidade

- Avisa ao Flavio que eu completei 82 anos!, diz, com entusiasmo.

O sorriso largo e fácil da pequenina senhora, de cabeleira branca como neve, contrasta com a sua história de vida.

Hoje, penúltimo dia da II Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, tive o prazer de conhecê-la. Mesmo no meio de 3 mil militantes dos direitos das mulheres, Clara se sobressai.

Uma pequena multidão a acompanha aonde quer que vá. Mais pela vontade e possibilidade de trocar algumas palavras e conhecer a sua amabilidade do que pelos cuidados de saúde que requer.


Quando praticamente não existia o termo "machismo" para caracterizar esta dimensão da cultura hegemônica - visto que a profundidade de suas raízes anulava qualquer centelha questionadora -, Clara já era uma mulher independente, desafiadora dos padrões dominantes de sua época.

Viveu grande parte da vida na clandestinidade, fruto da opção revolucionária e da união com Carlos Marighella. É uma testemunha viva da tradição autoritária e anti-popular de um Estado que sempre serviu - e continua servindo - de agente promotor dos interesses de uma elite que não sabe o que significa a palavra democracia.

Clara Charf também é testemunha do tipo de tratamento destinado pelo Estado a quem se opõe à (des)ordem vigente. Subversivos, terroristas, comunas, vermelhos, radicais, xiitas, baderneiros, criminosos ou, no outro extremo da desqualificação, idealistas, utópicos, românticos ou nefelibatas... todas aquelas pessoas que, em algum momento, se enquadrarem nestas definições, sabem o peso da mão não tão invisível do Estado.

Com Clara, bastaram os poucos minutos em que conversamos para que eu sentisse com o próprio coração o significado das palavras que já haviam me dito sobre esta mulher doce e de imensa estatura moral.

Falei-lhe a respeito do mestre e amigo Flavio Valente:

- Ele foi morar na Alemanha e deixou comigo um presente que muito me honra, recebido de suas mãos, quando esteve em sua casa, em Havana, o Poesia Trunca. [extensa coletânea de poesias de militantes revolucionários latino-americanos, publicada apenas em Cuba, pela Casa das Américas]

Ontem (sábado) e hoje estive na Conferência, revendo amigas queridas que moram longe e colhendo assinaturas para uma moção de apoio à realização da I Conferência Nacional de Comunicação. Duas tardes com muitas histórias, muita energia positiva recebida e percebida e intensa renovação da disposição.

Transmito o recado ao Flavio e guardo na memória da alma o sorriso e o sentimento de doçura e paz que apenas quem se aproxima daquela pequenina senhora pode saber o gosto exato.

PS: Ganhei o Poesia Trunca do Flavio e assumi o compromisso de socializar para o mundo as pérolas nele reunidas. Em breve ele estará disponível na rede.

sábado, agosto 11, 2007

Janela sobre as proibições

Na parede de um botequim em Madri, um cartaz avisa: proibido cantar.

Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: é proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem.

Ou seja: ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca.

*****

Dedicado à inspiradíssima amiga Nanda Barreto.

Retirado do "As palavras andantes", obra magnífica talhada a quatro mãos: duas do Galeano, escrevendo, duas do J. Borges, desenhando.

E, para quem acha idealista esse texto do Galeano, vale dar uma lida nessa notícia:
http://educaterra.terra.com.br/cgi-bin/index_frame/educacao/noticias/2006/10/19/002.htm

A fronteira da arte

Foi a batalha mais longa de todas que se seguiram em Tuscatlán ou em qualquer outra região de El Salvador. Começou à meia-noite, quando as primeiras granadas caíram das montanhas, e durou toda a noite e foi até a tarde do dia seguinte. Os militares diziam que Cinquera era inexpugnável. Os guerrilheiros tinham atacado quatro vezes, e quatro vezes tinham fracassado. Na quinta vez, quando foi erguida a bandeira branca no mastro do quartel-general, os tiros para o alto começaram os festejos.

Julio Ama, que lutava e fotografava a guerra, andava caminhando pelas ruas. Levava seu fuzil na mão e a câmera, também carregada e pronta para disparar, pendurada no pescoço. Andava Julio pelas ruas poeirentas, procurando dos irmãos gêmeos. Esses gêmeos eram os únicos sobrevivientes de uma aldeia exterminada pelo exército. Tinham dezesseis anos. Gostavam de combater ao lado de Julio; e nas entre-guerras, ele os ensinava a ler e a fotografar. No turbilhão daquela batalha, Julio tinha perdido os gêmeos, e agora não os via entre os vivos ou entre os mortos.

Caminhou através do parque. Na esquina da igreja, se meteu-se numa viela. E então, finalmente, encontrou-os. Um dos gêmeos estava sentado no chão, de costas contra um muro. Sobre seus joelhos, jazia o outro, banhado em sangue; e aos pés, em cruz, estavam os dois fuzis.

Julio se aproximou, e talvez tenha dito alguma coisa. O gêmeo que vivia não disse nada, nem se moveu: estava lá, mas não estava. Seus olhos, que não pestanejavam, olhavam sem ver, perdidos em algum lugar, em nenhum lugar; e naquela cara sem lágrimas estavam a guerra inteira e a dor inteira.

Julio deixou seu fuzil no chão e empunhou a câmera. Rodou o filme, calculou num instante a luz e a distância, e colocou a imagem em foco. Os irmãos estavam no centro do visor, imóveis, perfeitamente enquadrados contra o muro recém-mordido pelas balas.

Julio ia fazer a foto de sua vida, mas o dedo não quis. Julio tentou, voltou a tentar, e o dedo não quis. Então baixou a câmera, sem apertar o botão, e se retirou em silêncio.

A câmera, uma Minolta, morreu em outra batalha, afogada pela chuva, um ano mais tarde.


Eduardo Galeano, O Livro dos Abraços