segunda-feira, abril 16, 2007

Galeano sobre Sebastião Salgado

Entre tantas, Sebastião Salgado é uma das figuras bastante presentes na obra de Eduardo Galeano.

Em "Nós dizemos não", há um capítulo especial para este fotógrafo brasileiro que ganhou o mundo, sobretudo o mundo dos de baixo. Quem quiser ver as suas fotos, basta passar por aqui: http://www.terra.com.br/sebastiaosalgado

Seguem alguns trechos sextraído da obra acima. Dedico à Cynthia, querida pernambucana que está entrando no mundo do Galeano.

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"A fome se parece com o homem que a fome que mata. O homem se parece com a árvore que o homem mata. As árvores tem braços e as pessoas, ramos. Corpos esquálidos, ressecados: árvores feitas de ossos e gente feita de nós e raízes que se retorcem ao sol. Nem as árvores nem as pessoas têm idade. Todos nasceram há milhares de anos, quem saberá quantos? E estão em pé, inexplicavelmente em pé, debaixo do céu que os desampara.

[...]

Quando a imagem emerge das águas do revelador e a luz se fixa em sombra para sempre, há um instante único que se desprende do tempo e se converte em sempre. Estas fotos sobrviverão a seus protagonistas, e a seu autor, para dar testemunho da despida verdade do mundo e de seu oculto fulgor. A câmara de Salgado se move na violenta escuridão, buscando luz, caçando luz. A luz cai do céu ou sobe denós? Nas fotos, esse instante de luz presa, essa faísca, nos revela o que não se vê, ou o que se vê mas não se nota: uma presença inadvertida, uma poderosa ausência. Ela nos avisa que a dor de viver e a tragédia de morrer escondem, em seu interior, uma magia poderosa, um luminoso mistério que redime a aventura humana no mundo.

[...]

As fotografias de Salgado oferecem um retrato múltiplo da dor humana. Ao mesmo tempo, nos convidam a celebrar a dignidade humana. São de uma franqueza brutal, estas imagens de fome e de pena, e no entanto têm respeito e pudor. Nada a ver com o turismo da miséria: estes trabalhos não violam a alma humana, mas a penetram para revelá-la. Às vezes Salgado mostra esqueletos, quase cadáveres, e a dignidade é a última coisa que lhes resta. Foram despojados de tudo, mas têm dignidade. Aí está a fonte de sua inexplicável beleza. Não são macabros, obscenos exibicionismos da miséria. Aqui existe poesia do horror, porque existe sentido da honra.

[...]

Salgado fotografa pessoas. Os fotógrafos passageiros fotografam fantasmas.

Convertida em objeto de consumo, a miséria dá prazer mórbido e muito dinheiro. No mercado da opulência, a miséria é uma mercadoria bem cotada.

Os fotógrafos da sociedade de consumo chegam perto mas não entram. Em fugazes visitas aos cenários do desespero ou da violência, descem do avião dou do helicóptero, apertam o botão, explode o fulgor do flash: eles fuzilam e fogem. Olharam sem ver e suas imagens não dizem nada. Frente a essas fotos pusilânimes, sujas de horror ou de sangue, os afortunados do mundo podem derramar uma lágrima de crocodilo, uma moeda, uma palavra piedosa, sem que nada mude de lugar na ordem de seu universo. Contemplando esses farrapos de pele escura, esquecidos por Deus e mijados pelos cães, qualquer nulidade se felicita intimamente: a vida não me tratou tão mal, afinal, se me comparar com isso aí. O inferno serve para confirmar as virtudes do Paraíso.

A caridade, vertical, humilha. A solidariedade, horizontal, ajuda. Salgado fotografa de dentro, solidariamente. Para fotografar a fome no deserto do Sael, ficou trabalhando durante 15 meses no lugar. Para reunir um punhado de fotos da América Latina, viajou sete anos.

[...]

Salgado é brasileiro. Quantos o desenvolvimento desenvolve no Brasil? As estatísticas registraram índices espetaculares de crescimento econômico nestas últimas três décadas, e sobretudo nos longos anos da ditadura militar. Mas em 1960 um em cada três brasileiros estava desnutrido. Agora, dois em cada três. Existem 17 milhões de crianças abandonadas. Em cada 10 crianças que morrem, a fome mata sete. O Brasil é o quarto exportador mundial de alimentos, o quinto país do mundo em superfície e o sexto em fome."

(1989)

Eduardo Galeano, Nós dizemos não.

quarta-feira, abril 04, 2007

Elas

"Atrás de todo grande homem, existe uma mulher". Freqüente homenagem, duvidoso elogio: reduz a mulher à condição de encosto de cadeira.

A função tradicional: a mulher é filha devota, abnegada esposa, mãe sacrificada, viúva exemplar. Ela obedece, decora, consola e cala. Na história oficial, esta sombra fiel só merece silêncio. No máximo, outorga-se uma ou outra menção às senhores dos próceres. Mas na história real, outra mulher surge entre os barrotes da gaiola. Às vezes, não há mais remédio a não ser reconhecer a sua existência. É o caso de sóror Juana Ines de la Cruz, que nem ela própria pôde evitar tão alto e perturbador talento, ou Manuela Sáenz e sua vida fulgurante.

Mas, isso sim: nada se diz, nem de passagem, das capitãs negras ou índias que propiciaram tremendas tundas às tropas coloniais antes das guerras de independência. Em honrosa exceção a esta lei do silêncio, a Jamaica reconheceu Nanny como heroína nacional: Nanny, a escrava bravia, metade mulher e metade deusa, que querendo liberdade encabeçou os negros fugitivos de Barlovento e humilhou o exército inglês, há dois séculos e meio.

Eduardo Galeano, Nós dizemos não.

PS: Dedicado à querida Gabi, autêntica representante da TFM (risos), que muito tem me escutado e me falado.