terça-feira, julho 24, 2007

Esse mundo que chamam de pós-moderno...

Para a amiga Natasha, precisa com as palavras e espontânea nas ações.

Todos retirados do maravilhoso "O livro dos abraços".

A fome/2

Um sistema de desvinculo: Boi sozinho se lambe melhor... O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços.


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A desmemoria/2

O medo seca a boca, molha as mãos e mutila. O medo de saber nos condena à ignorância; o medo de fazer nos reduz à impotência. A ditadura militar, medo de escutar, medo de dizer, nos converteu em surdos e mudos. Agora a democracia, que tem medo de recordar, nos adoece de amnésia; mas não se necessita ser Sigmund Freud para saber que não existe o tapete que possa ocultar a sujeira da memória.


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A civilização do consumo

Às vezes, no final da temporada de verão, quando os turistas iam embora de Calella, ouviam-se uivos vindos do morro. Eram os clamores dos cachorros amarrados nas árvores. Os turistas usavam os cachorros, para alívio da solidão, enquanto as férias duravam, e depois, na hora de partir, os cachorros eram amarrados morro acima, para que não seguissem os turistas que partiam.

segunda-feira, julho 02, 2007

Isadora

Para todas as pessoas que, também dançando, celebram a alegria de viver.

Isadora

Descalça, despida, envolvida apenas pela bandeira argentina, Isadora Duncan dança o hino nacional.

Comete esta ousadia numa noite de 1916, num café de estudantes de Buenos Aires, e na manhã seguinte todo mundo sabe: o empresário rompe o contrato, as boas famílias devolvem suas entradas ao Teatro Cólon e a imprensa exige a expulsão imediata desta pecadora norte-americana que veio à Argentina para macular os símbolos pátrios.

Isadora não entende nada. Nenhum francês protestou quando ela dançou a marselhesa com um xale vermelho como traje completo. Se é possível dançar uma emoção, se é possível dançar uma idéia, por que não se pode dançar um hino?

Liberdade ofende. Mulher de olhos brilhantes, Isadora é inimiga declarada da escola, do matrimônio, da dança clássica e de tudo aquilo que engaiole o vento. Ela dança porque dançando goza, e dança o que quer, quando quer e como quer, e as orquestras se calam frente à música que nasce de seu corpo.

Eduardo Galeano, Memória do Fogo III - O Século do Vento

domingo, julho 01, 2007

Dizem os índios

Dedico esse a Gustavo Gindre, brilhante companheiro do Intervozes, que sempre faz referência à idéia do texto abaixo.

Em suas falas, Gustavo costuma fazer uma anologia instigante entre o capitalismo presente e os primórdios deste modelo de sociedade. Hoje, a batalha que se trava na esfera da comunicação, em torno da transformação definitiva do conhecimento, patrimônio da humanidade, em mercadoria, acima de qualquer outra dimensão. Ontem, a batalha, repassada nas nossas escolas como processo "natural" da "evolução humana", para transformar a terra em produto comercializável, algo completamente impensável alguns poucos séculos atrás, e não apenas pelos nativos do Novo Continente.

Dizem os índios


Que tem dono a terra? Como assim? Como se há de vender? Como se há de comprar? Se ela não nos pertence... Nós somos dela. Seus filhos somos. Assim sempre, sempre. Terra viva. Como cria os vermes, assim nos cria. Tem ossos e sangue. Tem leite, e nos dá de mamar. Tem cabelos, pasta, palha, árvores. Ela sabe parir batatas. Faz nascer casas. Gente, faz nascer. Ela cuida de nós e nós cuidamos dela. Ela bebe chicha, aceita nosso convite. Filhos seus somos. Como há de vender-se? Como há de comprá-la?

Eduardo Galeano
, Memória do Fogo I – Os Nascimentos. p.263

Fontes:
- Gow, Rosalind, y Barnabé Condori: Kay Pacha, Cuzco, Centro de Estudios Rurales Andinos, 1976.
- Arguedas, José Maria (Con F. Izquierdo), Mitos, leyendas y cuentos peruanos, Lima, Casa de La Cultura, 1970.