segunda-feira, setembro 18, 2006

As cerimônias da angústia (diálogos com "O Velho")

4.

Em meados de 1973, o Velho foi nomeado jurado em um concurso de novelas e cruzou o rio. Uma noite me convidou para jantar. Ele estava com uma mulher. Caminhamos uns quarteirões, os três, pelo centro de Buenos Aires, por essa zona que os portenhos chamam de City. Para ele, caminhar custava; andava lento, se cansava fácil. Custava mas queria continuar, e parecia bastante satisfeito, embora dissesse que não reconhecia as ruas dessa cidade onde tinha vivido, tempos antes, uns quantos anos.

Fomos a uma cervejaria da rua Lavalle. O Velho comeu um bocadinho e deixou os talheres cruzados sobre o prato. Estava calado. Eu comia. Ela falava.

De repente, o Velho perguntou a ela:

– Você não quer ir ao toalete?

E ela disse:

– Não, não.

Terminei a salsicha com salada russa. Chamei o garçom. Pedi uma costeleta de porco, defumada, com batatas redondinhas. Três chopes.

O Velho insistia:

– Mas, tem certeza que não está querendo ir ao toalete?

– Sim, tenho – disse ela. – Não se preocupe.

Logo depois, outra vez.

– Você está com a cara brilhante – disse ele. – Seria conveniente dar um pulinho no banheiro e passar um pouco de pó-de-arroz.

Ela tirou um espelhinho da bolsa.

– Não está brilhando – disse, surpreendida.

– Mas eu acho que você está morrendo de vontade de ir ao banheiro – insistiu o Velho. – Eu acho que você quer ir.

Então ela reagiu.

– Se você quer ficar sozinho com seu amigo, é só dizer. Se eu incomodo, pode dizer, eu vou embora.

Se levantou, me levantei. Pus uma mão em seu ombro, pedi que tornasse a sentar. Disse:

– Vamos pedir a sobremesa. Você não...

– Se ele quer que eu vá, eu vou.

Soluçava.

– Você não vai sair daqui sem comer a sobremesa. Ele não quis dizer isso. Ele quer que você fique.

O Velho, impávido, olhava as cortininhas douradas da janela.

Aquela foi a sobremesa mais difícil da minha vida. Ele não tocou no seu prato. Ela comeu uma colheradinha de sorvete. Minha salada de frutas ficou entalada na garganta.

Finalmente ela se levantou. Despediu-se, com a voz quebrada pelo choro, e se foi. O Velho não moveu um músculo.

Continuou calado por um tempão. Aceitou o café com uma leve inclinação da cabeça.

Tentei dizer algo, qualquer coisa, e ele concordava sem palavras. Tinha a testa enrugada e o olhar de infinita tristeza, que eu conhecia de antes.

– A gente tem mesmo é de se foder – disse, finalmente. – Sabe para que eu queria que ela fosse um instante à toalete? Para dizer a você que me sinto muito feliz. Eu queria dizer a você que nunca estive tão bem com ela como nesses dias. Que estou feliz como um menino, que estou como um potrinho, que...

E movia a cabeça.

– A gente tem mesmo de se foder.

[Dias e noites de amor e de guerra]

O "Velho" é Juan Carlos Onetti, escritor tão fabuloso quanto desconhecido dos brasileiros. Textos deles ainda serão publicados por aqui.

Para Maria Raquel, que me tirou do exílio e tem mudado meus conceitos.

Nenhum comentário: