segunda-feira, novembro 06, 2006

Lembrando Vlado Herzog

Essa eu dedico especialmente aos dirigentes Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, que ofenderam a memória de Vlado - e de todos aqueles/as que lutaram contra a ditadura militar e sofreram na pele as conseqüências. O Sindicato convidou Cláudio Lembo para a entrega do prêmio de direitos humanos que leva o nome de Vlado, "suicidado" pelos torturadores do regime que tinha entre seus apoiadores o atual governador de São Paulo. Saiba mais aqui.

Rio de Janeiro, outubro de 1975
Essa manhã saiu de sua casa e nunca mais foi visto vivo

[...]

2

Estamos no Luna quando Ary traz a notícia:

- Suicidaram ele – diz.

Torres contou por telefone. Foi avisada de São Paulo.

Eric* se levanta, pálido, boquiaberto. Aperto o seu braço; torna a sentar. Eu sei que ele tinha combinado de se encontrar com Vlado e que Vlado não tinha ido nem telefonado.

- Mas se ele não estava em nada – diz.

- Mataram porque ele não sabia – diz Galeno**.

- A máquina está louca – penso, ou digo. – Devem ter atribuído a ele até a Revolução de 1917.

Eric diz:

- Eu achava que isso tinha acabado.

Sua cabeça cai entre as mãos.

- Eu... – se queixa.

- Não, Eric – digo.

- Você não entende – diz. – Não entende nada. Não entende merda nenhuma.

Os copos estão vazios. Peço mais cerveja. Peço que encham nossos pratos.

Eric me crava um olhar furioso e se mete no banheiro.

Abro a porta. Encontro-o de costas contra a parede. Tem a cara amassada e os olhos úmidos; os punhos em tensão.

- Eu achava que tinha acabado. Achava que tudo isso tinha acabado – diz.

Eric era amigo de Vlado e sabe o que o Vlado tinha feito e tanta coisa que ia fazer e não pôde.

[...]

6

Vlado Herzog tomou banho, fez a barba; beijou a mulher. Ela não se levantou para acompanhá-lo até a porta.

- Não há nada a temer – disse ele. – Me apresento, esclareço tudo e volto pra casa.

O noticiário da televisão, esta noite, saiu assinado por ele. Quando as pessoas viram o noticiário, ele já estava morto.

O comunicado oficial disse que ele tinha se enforcado. As autoridades não permitiram uma nova autópsia.

Vlado não foi enterrado no setor dos suicidas.

O chefe da segurança pública de São Paulo declarou: “Esta é uma guerra crua, uma guerra nua, e é uma guerra na qual nós temos de utilizar as mesmas técnicas de nossos inimigos, senão quisermos ser derrotados. Vamos almoça-los, antes que eles nos jantem”.


Eduardo Galeano, "Dias e noites de amor e de guerra".

*Eric Nepomuceno, jornalista, escritor e tradutor da maior parte da obra de Galeano no Brasil.
**Galeno de Freitas, também jornalista, escritor e tradutor. Dentre tantas obras valiosas, traduziu "As veias abertas da América Latina".

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