Rio de Janeiro, outubro de 1975
Essa manhã saiu de sua casa e nunca mais foi visto vivo
2
Estamos no Luna quando Ary traz a notícia:
- Suicidaram ele – diz.
Torres contou por telefone. Foi avisada de São Paulo.
Eric* se levanta, pálido, boquiaberto. Aperto o seu braço; torna a sentar. Eu sei que ele tinha combinado de se encontrar com Vlado e que Vlado não tinha ido nem telefonado.
- Mas se ele não estava em nada – diz.
- Mataram porque ele não sabia – diz Galeno**.
- A máquina está louca – penso, ou digo. – Devem ter atribuído a ele até a Revolução de 1917.
Eric diz:
- Eu achava que isso tinha acabado.
Sua cabeça cai entre as mãos.
- Eu... – se queixa.
- Não, Eric – digo.
- Você não entende – diz. – Não entende nada. Não entende merda nenhuma.
Os copos estão vazios. Peço mais cerveja. Peço que encham nossos pratos.
Eric me crava um olhar furioso e se mete no banheiro.
Abro a porta. Encontro-o de costas contra a parede. Tem a cara amassada e os olhos úmidos; os punhos em tensão.
- Eu achava que tinha acabado. Achava que tudo isso tinha acabado – diz.
Eric era amigo de Vlado e sabe o que o Vlado tinha feito e tanta coisa que ia fazer e não pôde.
[...]
6
Vlado Herzog tomou banho, fez a barba; beijou a mulher. Ela não se levantou para acompanhá-lo até a porta.
- Não há nada a temer – disse ele. – Me apresento, esclareço tudo e volto pra casa.
O noticiário da televisão, esta noite, saiu assinado por ele. Quando as pessoas viram o noticiário, ele já estava morto.
O comunicado oficial disse que ele tinha se enforcado. As autoridades não permitiram uma nova autópsia.
Vlado não foi enterrado no setor dos suicidas.
O chefe da segurança pública de São Paulo declarou: “Esta é uma guerra crua, uma guerra nua, e é uma guerra na qual nós temos de utilizar as mesmas técnicas de nossos inimigos, senão quisermos ser derrotados. Vamos almoça-los, antes que eles nos jantem”.
Eduardo Galeano, "Dias e noites de amor e de guerra".
*Eric Nepomuceno, jornalista, escritor e tradutor da maior parte da obra de Galeano no Brasil.
**Galeno de Freitas, também jornalista, escritor e tradutor. Dentre tantas obras valiosas, traduziu "As veias abertas da América Latina".
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