domingo, abril 27, 2008

Aprendizado, renovação, intensidade...

Começo a escrever estas linhas às 2h24 da madrugada de sábado, 19 de abril de 2008. Dum quarto de hotel em Cariacica(ES), onde entrei há menos de uma hora, depois do nosso pequeno grupo ter sido barrado, por falta de vagas, no hotel previsto. Por acaso, identifico que o hotel, bastante simples, oferece uma rede sem fio. Cá estou.

O dia começou com cinco horas entre aeroportos (Brasília-Rio-Vitória). Leve pernada em busca de um almoço que acabou sendo delicioso - confesso que cometi sem pudores o pecado da gula (moqueca, carne assada, lingüiça, feijão preto, arroz com milho, batata frita, tomate, cebola, rúcula, alface e uma farofinha, óbvio).

Entre ida e vinda, quatro horas de estrada (no velho ônibus coletivo urbano, nada da poltronas, muito menos reclináveis), em comboio com mais de duzentos(as) militantes de todo o país (se conversei com uma índia do Acre, o resto é moleza), entre Vitória e Aracruz, município cujo nome é mais conhecido por motivos bastante específicos.

No caminho, além do belíssimo litoral capixaba, um detalhe me grita a atenção. Lembro de uma frase do Eduardo Galeano (sim, dele mesmo!): "A história é um paradoxo ambulante. A contradição move-lhe as pernas". Os ônibus que formam o comboio e transportam os(as) militantes de direitos humanos têm a inscrição: "Este ônibus está a serviço da Vale", ao lado da nova marca da empresa.


Para quem não lembra, esta é a mesma Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), que pertenceu por décadas ao patrimônio do povo brasileiro e foi doada por 3 bilhões de reais (com dinheiro do BNDES, ainda por cima), quando valia mais de cem bilhões, a um consórcio de empresas cuja líder (Bradesco) participou do processo de avaliação que definiu o valor do leilão, realizado em 1997. Hoje, a Vale não é apenas uma das maiores mineradoras do mundo. É uma das maiores violadoras de direitos humanos do Brasil, usando o aparato do Estado para reprimir populações que são prejudicadas por sua gestão sustentavelmente destrutiva.

Abertura do XV Encontro/Assembléia Nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos. O local da cerimônia foi acertado desde setembro.

Na semana passada, um motivo especial se incorporou aos objetivos do evento do MNDH de homenagear a luta que indígenas e quilomboloas da região travam há mais de duas décadas contra uma das maiores papeleiras do mundo, a Aracruz Celulose: as terras indígenas, adquiridas pela empresa através de fraude em conluio com o Ministério da (In)Justiça do Sarney, finalmente começaram a ser demarcadas. O que já seria uma merecida e bela homenagem se transformou em festa de celebração desta vitória histórica. Os guarani e os tupiniquim vão passar o fim de semana comemorando com todo tipo de atividade: esporte, educação, arte, política, ritos sagrados...

Impossível não se sentir mais vivo, contagiado pela força das palavras e gesto de Iara Tupã (Deusdéia, o nome cristão), uma das líderes locais. O mesmo se aplica ao cacique Peru, que assume a deficiência na língua do branco ao mesmo tempo em que expõe suas convicções: "Eu não sei falar português direito... mas sei muito bem dos nosso pobrema e do nosso sofrimento"...

Em vários momentos, a garganta se torce em nó. Noutros, sorrisos gerados pelo humor sagaz de pessoas que são vítimas de preconceitos e discriminações dos mais diversos tipos.

Enquanto falam, atrás deles, no espaço armado para o ato, podem ser vistas bandeiras do MST, do MTST, do próprio MNDH, do arco-íris do movimento GLBTT, duas com a foto imortal de Che Guevara, uma sobre a bandeira de Cuba, entre outros símbolos que representam a diversidade das lutas sociais no Brasil e no mundo.

A noite é de muita festa. Muita alegria. Muita comida. Muita arte. Muita vida.

Adolescentes quilombolas se divertem observando a dança das guerreiras índias. Pouco depois, são os(as) jovens e crianças dos povos indígenas - que habitavam esta terra muito antes de a nomearem de Brasil, nunca é demais lembrar - que dançam ao som percussivo e contagiante do congo, maior representante da música negra no Espírito Santo. Um indiozinho, com não mais do que 12 anos, enverga uma camisa antiga do Fluminense. Uma senhora, septuagenária, não pára de dançar e sorrir, enquanto empunha um estandarte com São Benedito, padroeiro do povo negro aqui e em tantas outras bandas.

Vim representar o Intervozes num debate sobre direito à comunicação e democracia. Ainda nem falei (apenas na tarde deste sábado), mas já me sinto imensamente realizado com o que vi, ouvi e senti nesta sexta-feira. O que vier a mais, excelente.

Meu corpo, que na véspera dormiu apenas três horas, clama por um recesso que, embora breve, será muito revigorante, pois o espírito já foi renovado e, por isso, não quer me entregar a Morfeu ou a Hipnos.

Um dos dias mais intensos da minha vida, que jamais poderá ser descrito em palavras.

Rogério Tomaz Jr.
Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social

PS: Fiz uns vídeos e assim que colocar no Youtube postarei os links aqui.

quarta-feira, abril 02, 2008

Futebol ao sol e sombra

Devia esse há tempos. Já falei desse livro - Futebol ao sol e sombra - que considero o melhor sobre o tema. Segue o texto de abertura, "Confissão do autor", que vale para a maioria absoluta dos cronistas do esporte, lembrando o que acontece entre artistas e muitos críticos de arte.

E vale também para expressar algo do qual também já falei aqui: minha paixão pelo jogo é maior do que a paixão pelas camisas. Seguindo este princípio, hoje em dia torço tanto pela Argentina quanto pela Amarelinha. E até o único time que já odiei na vida - o Fortaleza, que, nos anos recentes, tem levado muita vantagem sobre o meu Ceará Sporting Club - é apenas uma referência de grande rivalidade, nada além disso.

Sem mais. Dedicado à Ana Paula, menina Trovão, que jura acompanhar futebol - e torcer pelo São Paulo - desde pequenininha. E que me faz lembrar o grande Vinícius: "A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida".

"Confissão do autor"

Como todos os meninos uruguaios, eu também quis ser jogador de futebol. Jogava muito bem, era uma maravilha, mas só de noite, enquanto dormia: de dia era o pior perna-de-pau que já passou pelos campos do meu país.

Como torcedor, também deixava muito a desejar. Juan Alberto Schiaffino e Julio César Abbadie jogavam no Peñarol, o time inimigo. Como bom torcedor do Nacional, eu fazia o possível para odiá-los. Mas Pepe Schiaffino, com suas jogadas magistrais, armava o jogo como se estivesse lá na torre mais alta do estádio, vendo o campo inteiro, e Pardo Abbadie deslizava a bola sobre a linha branca da lateral e corria com botas de sete léguas, gingando, sem tocar na bola nem nos rivais: eu não tinha saída a não ser admirá-los. Chegava até a sentir vontade de aplaudi-los.

Os anos se passaram, e com o tempo acabei assumindo minha identidade: não passo de um mendigo do bom futebol. Ando pelo mundo de chapéu na mão, e nos estádios suplico:

- Uma linda jogada, pelo amor de Deus!

E quando acontece o bom futebol, agradeço o milagre - sem me importar com o clube ou o país que o oferece.

Eduardo Galeano - Futebol ao sol e sombra

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Em tempo, não vejo nenhum time nesse início de temporada no Brasil jogar um futebol tão vistoso quanto o Fluminense. Chega perto o Botafogo.

Lá fora, confesso que me deleito com o trio de jovens craques do Manchester United, Wayne Rooney, Carlitos Tevez e o tenor Cristiano Ronaldo. O Barcelona ainda tem alguns lampejos, mas longe do esquadrão de dois anos atrás.