domingo, janeiro 21, 2007

O assistencialismo

Uma propaganda do McDonald's mostra um rapaz comendo um hambúrguer: "Eu não divido nada", diz. O panaca não sabe que os novos tempos mandam ceder os restos, ao invés de jogá-los no lixo. A energia solidária continua sendo considarada um esbanjamento inútil e a consciência crítica apenas uma etapa da estupidez na vida humana, mas o poder decidiu alternar o garrote com a esmola e agora prega a assistência social, que é a única forma de justiça social que ele se permite.

O filósofo argentino Tato Bores, que atuava como cômico, soube formular esta doutrina muito antes de que os ideólogos a promovessem, os tecnocratas a implementassem e os governos a adotassem no chamado terceiro mundo:

Vamos dar milho aos aposentados - aconselhou Dom Tato ao invés de dá-lo às pombas.

A santa mais chorada do fim do século, a princesa Diana, encontrou sua vocação na caridade, depois de ter sido abandonada pela mãe, atormentada pela sogra, enganada pelo marido e traída pelos amantes. Quando morreu, Diana presidia oitenta e uma organizações de caridade pública. Se estivesse viva, poderia muito bem assumir o Ministério da Economia de qualquer governo do sul do mundo. Por que não? Afinal, a caridade consola, mas não questiona.

Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo - disse o arcebispo brasileiro Hélder Câmara. E quando pergunto por que eles não têm comida, me chamam de comunista.


Diferentemente da solidariedade, que é horizontal e praticada de igual para igual, a caridade é praticada de cima para baixo, humilha quem a recebe e jamais altera um milímetro as relações de poder: na melhor das hipóteses, um dia poderá haver justiça, mas lá no céu. Aqui na terra, a caridade não perturba a injustiça. Só se propõe a disfarçá-la.


Eduardo Galeano, De Pernas pro ar (a escola do mundo ao avesso).

quarta-feira, janeiro 10, 2007

A autoridade

Como não somos obrigados a homenagear as mulheres apenas no 8 de março, dedico a elas este pequeno texto. Em especial à amiga Denise, de Palmas, que faz aniversário neste 10 de janeiro.

A autoridade

Em épocas remotas, as mulheres se sentavam na proa das canoas e os homens na popa. As mulheres caçavam e pescavam. Elas saíam das aldeias e voltavam quando podiam ou queriam. Os homens montavam as choças, preparavam a comida, mantinham acesas as fogueiras contra o frio, cuidavam dos filhos e curtiam as peles de abrigo.

Assim era a vida entre os índios onas e os yaganes, na Terra do Fogo, até que um dia os homens mataram todas as mulheres e puseram as máscaras que as mulheres tinham inventado para aterrorizá-los.

Somente as meninas recém-nascidas se salvaram do extermínio. Enquanto elas cresciam, os assassinos lhes diziam e repetiam que servir aos homens era seu destino. Elas acreditaram. Também acreditaram suas filhas e as filhas de suas filhas.

Eduardo Galeano, Memória do Fogo I - Os nascimentos. Fontes:

- Plath, Oreste. Geografía del mito y la legenda chilenos. Santiago del Chile, Nascimentos, 1973.
- Harris, Olivia, y Young, Kate (Recompilación). Antropología y feminismo. Barcelona, Anagrama, 1973.

PS: Abraço à amiga e companheira de luta Oona, cuja
curiosidade me lembrou de colocar a referência de onde o Galeano se inspirou para conceber o texto. Vou incluir nos posts anteriores também, onde houver referência explícita.

quarta-feira, janeiro 03, 2007

A meu pai

A função da arte

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: Me ajuda a olhar!


Eduardo Galeano - O livro dos abraços

Dedicado a meu pai, Rogério, que completa hoje 57 anos bem vividos e melhor ainda ensinados e aprendidos.

segunda-feira, janeiro 01, 2007

O amor

Em 2007 serei bem mais ativo na atualização do(s) blog(s).

Rogério Tomaz Jr.

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O amor


Na selva amazônica a primeira mulher e o primeiro homem se olharam com curiosidade. Era estranho o que tinham entre as pernas.

- Te cortaram? - perguntou o homem.
- Não - disse ela - Sempre fui assim.

Ele examinou-a de perto. Coçou a cabeça. Ali havia uma chaga aberta. Disse:

- Não comas mandioca, nem bananas, e nenhuma fruta que se abra ao amanhecer. Eu te curarei. Deita na rede, e descansa.

Ela obedeceu. Com paciência bebeu os mingaus de ervas e se deixou aplicar as pomadas e os ungüentos. Tinha de apertar os dentes para não rir, quando ele dizia:

- Não te preocupes.

Ela gostava da brincadeira, embora começasse a se cansar de viver em jejum, estendida em uma rede. A memória das frutas enchia sua boca de água.

Uma tarde o homem chegou correndo através da floresta. Dava saltos de euforia e gritava:

- Encontrei! Encontrei!

Acabava de ver o macaco curando a macada na copa de uma árvore.

- É assim - disse o homem, aproximando-se da mulher.

Quando acabou o longo abraço, um aroma espesso, de flores e frutas, invadiu o ar. Dos corpos, que jaziam juntos, se desprendiam vapores e fulgores jamais vistos, e era tanta a formosura que os sóis e os deuses morriam de vergonha.


Eduardo Galeano, Memória do Fogo I - Os nascimentos