quinta-feira, maio 03, 2007

A linguagem

Um pouco sobre a hipocrisia da linguagem dominante. "Mude a forma através da qual as pessoas pensam e você mudará o mundo", acho que ouvi no filme "Um grito de liberdade", sobre a história de Steve Biko, uma das minhas principais referências políticas.

O poder da ideologia é exatamente esse. Mudar a forma de pensar da sociedade. O primeiro passo é dominar a linguagem. Controlar o ato arbitrário de dar nome às coisas e aos fatos. Chamar de guerra a invasão de um país, como ocorreu no Iraque e Afeganistão, só para reduzir a lista aos mais recentes. Classificar de baderna ou até de terrorismo as ações políticas reivindicatórias de direitos, como a nossa grande (e fascista) mídia faz com os movimentos sociais.

Galeano fala melhor sobre isso. Ofereço à amiga Natasha, (quase) nutricionista que não conhecia Galeano, mas se interessa pelo desmascaramento da hipocrisia que nos aprisiona.

A linguagem/1

As empresas multinacionais são assim chamadas porque operam em muitos países ao mesmo tempo, mas pertencem a poucos países que monopolizam a riqueza, o poder político, militar e cultural, o conhecimento científico e a alta tecnologia. As dez maiores multinacionais somam atualmente uma receita maior do que a de cem países juntos.

Países em desenvolvimento é o nome pelo qual os entendidos designam os países subordinados ao desenvolvimento alheio. Segundo as Nações Unidas, os países em desenvolvimento enviam aos países desenvolvidos, através de desiguais relações comerciais e financeiras, dez vezes mais dinheiro do que aquele que recebem através da ajuda externa.

Ajuda externa é o nome do impostinho que o vício paga à virtude nas relações internacionais. A ajuda externa é distribuída de tal maneira que, em regra, confirma a injustiça, raramente a contradiz. A África negra, em 1995, acumulava cerca de setenta e cinco por cento dos casos de Aids no mundo, mas recebia só três por cento dos fundos distribuídos pelos organismos internacionais para a prevenção da peste.

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A linguagem/2

Em 1995, a imprensa argentina revelou que alguns diretores do Banco da Nação tinham recebido trinta e sete milhões de dólares da empresa norte-americana IBM, em troca de uma contratação de serviços cotados 120 milhões de dólares acima do preço normal.

Três anos depois, esses diretores do banco estatal reconheceram ter embolsado e depositado na Suíça tais vinténs, mas tiveram o bom gosto de evitar a palavra suborno ou a grosseira expressão popular coima: um deles usou a palavra gratificação, outro disse que era uma gentileza e o mais delicado explicou que se tratava de um reconhecimento da alegria da IBM.

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A linguagem/3

Na era virotiana, era proibido fazer menção às calças na presença de uma senhorita. Hoje em dia, não fica bem dizer certas coisas perante a opinião pública:

o capitalismo exibe o nome artístico de economia de mercado;

o imperialismo se chama globalização;

as vítimas do imperialismo se chamam países em vias de desenvolvimento, que é como chamar meninos aos anões;

o oportunismo se chama pragmatismo;

a traição se chama realismo;

os pobres se chamam carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos;

a expulsão dos meninos pobres do sistema educativo é conhecida pelo nome de deserção escolar;

o direito do patrão despedir o trabalhador sem indenização nem explicação se chama flexibilização do mercado de trabalho;

a linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os direitos das minorias, como se a metade masculina da humanidade fosse a maioria;

em lugar de ditadura militar, diz-se processo;

as torturas são chamadas constrangimentos ilegais ou também pressões físicas e psicológicas;

quando os ladrões são de boa família, não são ladrões, são cleptomaníacos.


Eduardo Galeano. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso.

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