terça-feira, novembro 20, 2007
Mulheres e o futebol
Por isso minha paixão futebolística supera e muito minha paixão clubística. Transformar o amor ao jogo em amor exclusivo ao clube é ato de estupidez e cegueira. Pequenez mesmo.
"Futebol ao sol e sombra", do Galeano, é, de longe, o melhor livro sobre futebol que li até hoje, afora os de Nélson Rodrigues, que é hour concour. E não foram poucos. Outros bem interessantes foram "Como o futebol explica o mundo", do jornalista estadunidense (!) Franklin Foer, e "Futebol e guerra", do inglês Andy Dougan. O primeiro traça alguns paralelos entre a globalização e o mundo da bola. O segundo conta a épica história de resistência do Dínamo de Kiev na Ucrânia ocupada pelos nazistas na Segunda Guerra - história, aliás, contada por Galeano no seu opúsculo sobre o "esporte das multidões". Fico devendo aqui.
Há até um recente site "Livros de futebol". Os dois acima não estão no catálogo, ainda.
Segue trecho do artigo "Coisas raras", publicado pelo Galeano na excelente Fórum.
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Não é um milagre químico. Estão dopados pelo entusiasmo e pela alegria. Melhor dito: dopadas. Os onze jogadores de cada equipe são muito mais que onze. Melhor dito: as onze jogadoras. Neles, joga uma multidão. Melhor dito: nelas. Estes são rituais de afirmação dos humilhados. Melhor dito: das humilhadas.
Pouco a pouco, o futebol das mulheres vem ganhando espaço nos meios dedicados à difusão desse esporte de machos para machos, que não sabe o que fazer com esta imprevista invasão de tantas senhoras e senhoritas.
A nível profissional, o desenvolvimento do futebol feminino encontra, hoje em dia, certa ressonância. Mas não encontra eco nenhum, ou desperta ecos inimigos, no jogo que se pratica pelo puro prazer de jogar.
Na Nigéria, a seleção feminina é um orgulho nacional. Disputa os primeiros lugares no mundo. Mas no norte muçulmano os homens se opõem, porque o futebol convida as donzelas à depravação. Mas terminam por aceitá-lo, porque o futebol é um pecado que pode outorgar fama e salvar a família da pobreza. Se não fosse pelo ouro que promete o futebol profissional, os sacerdotes proibiriam essas roupas indecentes impostas por um satânico esporte que deixa as mulheres estéreis, por lesão do jogo ou castigo de Alá.
Em Zanzibar e no Sudão, os irmãos varões, guardiões da honra da família, castigam com surras esta louca mania de suas irmãs que se crêem homens capazes de chutar uma bola, e que cometem o sacrilégio de descobrir o corpo. O futebol, coisa de machos, nega às mulheres campos de entretenimento e de jogo. Os homens se negam a jogar contra as mulheres. Por respeito à tradição religiosa, dizem. Pode ser. Além disso, ocorre que a cada vez que jogam, perdem.
Na Bolívia, do outro lado do mar, não há problema. As mulheres jogam futebol, nos povos do altiplano, sem desnudar suas numerosas polleras. Vestem por cima uma camiseta de cores e sem demora põem-se a fazer gols. Cada partida é uma festa. O futebol é um espaço de liberdade aberto às mulheres cheias de filhos, oprimidas pelo trabalho escravo na terra e nos teares, submetidas às freqüentes surras de seus maridos bêbados. Jogam descalças. Cada equipe triunfante recebe de prêmio uma ovelha. A equipe derrotada, também. Estas mulheres silenciosas riem às gargalhadas por toda a partida e depois seguem morrendo de rir por todo o banquete. Festejam juntas, vencedoras e vencidas. Nenhum homem se atreve a meter o nariz.
Eduardo Galeano
domingo, setembro 09, 2007
As luta dos índios
No último 28 de agosto, nos gabinetes do poder público, a vitória dos povos Tupinikim e Guarani do Espírito Santo contra a multinacional Aracruz. Esta empresa, que havia se apropriado ilegalmente de territórios indígenas e quilombolas, sofreu uma dura derrota jurídica e política com a assinatura da portaria que garante aos índios a posse da área reivindicada há décadas.
Índios comemoram vitória contra Aracruz Celulose
Foto: Valter Campanato (Agência Brasil)
Exatamente uma semana antes, uma amostra nítida da natureza - mais do que face, trata-se de natureza - arbitrária e truculenta dos senhores de escravos do agronegócio brasileiro, cuja essência é a mesma há quinhentos anos.
Em Juína(MT), ativistas do Greeenpeace, da OPAN e dois jornalistas franceses foram impedidos (!) de acompanhar um grupo de índios Enawenê Nawê numa missão cujo objetivo seria colher imagens para um documentário sobre o desmatamento do seu território pelos fazendeiros locais. Com isso, a Constituição Federal foi reduzida a pó, em nome do sagrado direito à propriedade e da santíssima liberdade econômica. Assista ao vídeo (12min) que mostra o tipo de democracia defendem os latifundiários.
Abaixo, pequeno texto escrito em 1691, atualíssimo ainda hoje.
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1691
Placentia
Adario, chefe dos índios hurões, fala ao Barão de Lahontan, colonizador francês de Terranova
Não, já bastante miseráveis são os senhores; não imagino como poderiam ser piores. A que espécie de criaturas pertencem os europeus, que classe de homens são? Os europeus, que só fazem o bem por obrigação, e não tem outro motivo para evitar o mal que o medo ao castigo...
Quem lhes deu os países que agora habitam? Com que direito os possuem? Estas terras pertenceram desde sempre aos algonquinos. De verdade, meu querido irmão, sinto pena de ti no fundo de minha alma. Siga meu conselho e faça-te hurão. Vejo claramente a diferença que há entre a minha condição e a tua. Eu sou meu amo, e o amo da minha condição. Eu sou o amo de meu próprio corpo, disponho de mim, faço o que me dá prazer, sou o primeiro e o último da minha nação, não tenho medo de ninguém e só dependo do Grande Espírito. Em compensação, teu corpo e tua alma estão condenados, dependem do grande capitão, o vice-rei dispõe de ti, não tens a liberdade de fazer o que te vier à cabeça; vives com medo dos ladrões, das falsas testemunhas, dos assassinos; e deves obediência a uma infinidade de pessoas que estão por cima de ti. É verdade ou não é verdade?
Eduardo Galeano, Memória do Fogo I - Os nascimentos
Fonte: MacLuhan, T.C. (Compilador) Touch the Earth (A self-portrait of Indian existence). Nova York, Simon and Schuster, 1971.
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Mais sobre esse tema neste espaço:
http://bocasdotempo.blogspot.com/2007/07/dizem-os-ndios.html
domingo, agosto 26, 2007
Cinco mulheres
Uma pequena homenagem às cinco mulheres que trabalham cotidianamente comigo na Abrandh e com as quais aprendo bastante, sobretudo. E também uma homenagem às briosas militantes que participaram do curso.
E agora, enquanto escrevo, converso com a querida amiga alagoana-paulistana Maria "quase National Geographic" Catharina, a quem também dedico estas linhas do Galeano.
Cinco mulheres
– O inimigo principal qual é? A ditadura militar? A burguesia boliviana? O Imperialismo? Não, companheiros. Eu quero dizer só isso: nosso inimigo principal é o medo. Temos medo por dentro.
Só isso disse Domitila na mina de estanho de Catavo e então veio para La Paz, a capital da Bolívia, com outras quatro mulheres e uma vintena de filhos. No Natal começaram a greve de fome. Ninguém acreditou nelas. Vários acharam que esta piada era boa:
– Quer dizer que cinco mulheres vão derrubar a ditadura?
O sacerdote Luis Espinal é o primeiro a se somar. Num minuto já são mil e quinhentos os que passam fome na Bolívia inteira, de propósito. As cinco mulheres, acostumadas à fome desde que nasceram, chamam a água de franco ou peru, de costeleta o sal, e o riso as alimenta.
Multiplicam-se enquanto isso os grevistas de fome, três mil, dez mil, até que são incontáveis os bolivianos que deixam de comer e deixam de trabalhar e vinte e três dias depois do começo da greve de fome o povo se rebela e invade as ruas e já não há como parar isso.
Em 1978, as cinco mulheres derrubam a ditadura militar.
Eduardo Galeano, Memória do Fogo III - O século do vento
PS: Para quem acredita que este é um texto de ficção, recomendo a leitura desta notícia.
PS2: Saudação especial à amiga e conterrânea Selma, que me falou do Se me deixam falar, livro de Moema Viezzer a partir de depoimentos de Domitila Chungara, mulher "pobre, descendente de indígenas, esposa de um minerador, tudo isso durante a ditadura militar no interior da Bolívia".
PS3: Aceito o livro de presente (o Dia das Crianças está chegando...)
PS4: ACHEI O LIVRO NUM SEBO VIRTUAL (www.estantevirtual.com.br) POR R$ 4,00 (sim, quatro reais mesmo!!) e já li. FODÁSTICO!! Em breve escreverei a respeito.
segunda-feira, agosto 20, 2007
A personificação da dignidade
O sorriso largo e fácil da pequenina senhora, de cabeleira branca como neve, contrasta com a sua história de vida.
Hoje, penúltimo dia da II Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, tive o prazer de conhecê-la. Mesmo no meio de 3 mil militantes dos direitos das mulheres, Clara se sobressai.
Uma pequena multidão a acompanha aonde quer que vá. Mais pela vontade e possibilidade de trocar algumas palavras e conhecer a sua amabilidade do que pelos cuidados de saúde que requer.
Quando praticamente não existia o termo "machismo" para caracterizar esta dimensão da cultura hegemônica - visto que a profundidade de suas raízes anulava qualquer centelha questionadora -, Clara já era uma mulher independente, desafiadora dos padrões dominantes de sua época.
Viveu grande parte da vida na clandestinidade, fruto da opção revolucionária e da união com Carlos Marighella. É uma testemunha viva da tradição autoritária e anti-popular de um Estado que sempre serviu - e continua servindo - de agente promotor dos interesses de uma elite que não sabe o que significa a palavra democracia.
Clara Charf também é testemunha do tipo de tratamento destinado pelo Estado a quem se opõe à (des)ordem vigente. Subversivos, terroristas, comunas, vermelhos, radicais, xiitas, baderneiros, criminosos ou, no outro extremo da desqualificação, idealistas, utópicos, românticos ou nefelibatas... todas aquelas pessoas que, em algum momento, se enquadrarem nestas definições, sabem o peso da mão não tão invisível do Estado.
Com Clara, bastaram os poucos minutos em que conversamos para que eu sentisse com o próprio coração o significado das palavras que já haviam me dito sobre esta mulher doce e de imensa estatura moral.
Falei-lhe a respeito do mestre e amigo Flavio Valente:
- Ele foi morar na Alemanha e deixou comigo um presente que muito me honra, recebido de suas mãos, quando esteve em sua casa, em Havana, o Poesia Trunca. [extensa coletânea de poesias de militantes revolucionários latino-americanos, publicada apenas em Cuba, pela Casa das Américas]
Ontem (sábado) e hoje estive na Conferência, revendo amigas queridas que moram longe e colhendo assinaturas para uma moção de apoio à realização da I Conferência Nacional de Comunicação. Duas tardes com muitas histórias, muita energia positiva recebida e percebida e intensa renovação da disposição.
Transmito o recado ao Flavio e guardo na memória da alma o sorriso e o sentimento de doçura e paz que apenas quem se aproxima daquela pequenina senhora pode saber o gosto exato.
PS: Ganhei o Poesia Trunca do Flavio e assumi o compromisso de socializar para o mundo as pérolas nele reunidas. Em breve ele estará disponível na rede.
sábado, agosto 11, 2007
Janela sobre as proibições
Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: é proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem.
Ou seja: ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca.
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Dedicado à inspiradíssima amiga Nanda Barreto.
Retirado do "As palavras andantes", obra magnífica talhada a quatro mãos: duas do Galeano, escrevendo, duas do J. Borges, desenhando.
E, para quem acha idealista esse texto do Galeano, vale dar uma lida nessa notícia:
http://educaterra.terra.com.br/cgi-bin/index_frame/educacao/noticias/2006/10/19/002.htm
A fronteira da arte
Julio Ama, que lutava e fotografava a guerra, andava caminhando pelas ruas. Levava seu fuzil na mão e a câmera, também carregada e pronta para disparar, pendurada no pescoço. Andava Julio pelas ruas poeirentas, procurando dos irmãos gêmeos. Esses gêmeos eram os únicos sobrevivientes de uma aldeia exterminada pelo exército. Tinham dezesseis anos. Gostavam de combater ao lado de Julio; e nas entre-guerras, ele os ensinava a ler e a fotografar. No turbilhão daquela batalha, Julio tinha perdido os gêmeos, e agora não os via entre os vivos ou entre os mortos.
Caminhou através do parque. Na esquina da igreja, se meteu-se numa viela. E então, finalmente, encontrou-os. Um dos gêmeos estava sentado no chão, de costas contra um muro. Sobre seus joelhos, jazia o outro, banhado em sangue; e aos pés, em cruz, estavam os dois fuzis.
Julio se aproximou, e talvez tenha dito alguma coisa. O gêmeo que vivia não disse nada, nem se moveu: estava lá, mas não estava. Seus olhos, que não pestanejavam, olhavam sem ver, perdidos em algum lugar, em nenhum lugar; e naquela cara sem lágrimas estavam a guerra inteira e a dor inteira.
Julio deixou seu fuzil no chão e empunhou a câmera. Rodou o filme, calculou num instante a luz e a distância, e colocou a imagem em foco. Os irmãos estavam no centro do visor, imóveis, perfeitamente enquadrados contra o muro recém-mordido pelas balas.
Julio ia fazer a foto de sua vida, mas o dedo não quis. Julio tentou, voltou a tentar, e o dedo não quis. Então baixou a câmera, sem apertar o botão, e se retirou em silêncio.
A câmera, uma Minolta, morreu em outra batalha, afogada pela chuva, um ano mais tarde.
Eduardo Galeano, O Livro dos Abraços
terça-feira, julho 24, 2007
Esse mundo que chamam de pós-moderno...
Todos retirados do maravilhoso "O livro dos abraços".
A fome/2
Um sistema de desvinculo: Boi sozinho se lambe melhor... O próximo, o outro, não é seu irmão, nem seu amante. O outro é um competidor, um inimigo, um obstáculo a ser vencido ou uma coisa a ser usada. O sistema, que não dá de comer, tampouco dá de amar: condena muitos à fome de pão e muitos mais à fome de abraços.
***
O medo seca a boca, molha as mãos e mutila. O medo de saber nos condena à ignorância; o medo de fazer nos reduz à impotência. A ditadura militar, medo de escutar, medo de dizer, nos converteu em surdos e mudos. Agora a democracia, que tem medo de recordar, nos adoece de amnésia; mas não se necessita ser Sigmund Freud para saber que não existe o tapete que possa ocultar a sujeira da memória.
***
segunda-feira, julho 02, 2007
Isadora
Isadora
Descalça, despida, envolvida apenas pela bandeira argentina, Isadora Duncan dança o hino nacional.
Comete esta ousadia numa noite de 1916, num café de estudantes de Buenos Aires, e na manhã seguinte todo mundo sabe: o empresário rompe o contrato, as boas famílias devolvem suas entradas ao Teatro Cólon e a imprensa exige a expulsão imediata desta pecadora norte-americana que veio à Argentina para macular os símbolos pátrios.
Isadora não entende nada. Nenhum francês protestou quando ela dançou a marselhesa com um xale vermelho como traje completo. Se é possível dançar uma emoção, se é possível dançar uma idéia, por que não se pode dançar um hino?
Liberdade ofende. Mulher de olhos brilhantes, Isadora é inimiga declarada da escola, do matrimônio, da dança clássica e de tudo aquilo que engaiole o vento. Ela dança porque dançando goza, e dança o que quer, quando quer e como quer, e as orquestras se calam frente à música que nasce de seu corpo.
Eduardo Galeano, Memória do Fogo III - O Século do Vento
domingo, julho 01, 2007
Dizem os índios
Em suas falas, Gustavo costuma fazer uma anologia instigante entre o capitalismo presente e os primórdios deste modelo de sociedade. Hoje, a batalha que se trava na esfera da comunicação, em torno da transformação definitiva do conhecimento, patrimônio da humanidade, em mercadoria, acima de qualquer outra dimensão. Ontem, a batalha, repassada nas nossas escolas como processo "natural" da "evolução humana", para transformar a terra em produto comercializável, algo completamente impensável alguns poucos séculos atrás, e não apenas pelos nativos do Novo Continente.
Dizem os índios
Que tem dono a terra? Como assim? Como se há de vender? Como se há de comprar? Se ela não nos pertence... Nós somos dela. Seus filhos somos. Assim sempre, sempre. Terra viva. Como cria os vermes, assim nos cria. Tem ossos e sangue. Tem leite, e nos dá de mamar. Tem cabelos, pasta, palha, árvores. Ela sabe parir batatas. Faz nascer casas. Gente, faz nascer. Ela cuida de nós e nós cuidamos dela. Ela bebe chicha, aceita nosso convite. Filhos seus somos. Como há de vender-se? Como há de comprá-la?
Eduardo Galeano, Memória do Fogo I – Os Nascimentos. p.263
Fontes:
- Gow, Rosalind, y Barnabé Condori: Kay Pacha, Cuzco, Centro de Estudios Rurales Andinos, 1976.
- Arguedas, José Maria (Con F. Izquierdo), Mitos, leyendas y cuentos peruanos, Lima, Casa de La Cultura, 1970.
quarta-feira, maio 23, 2007
O riso
O riso
O morcego, pendurado em um galho pelos pés, viu que um guerreiro kayapó se inclinava sobre os mananciais.
Quis ser seu amigo. Deixou-se cair sobre o guerreiro e o abraçou. Como não conhecia o idioma dos kayapós, falou ao guerreiro com as mãos. As carícias do morcego arrancaram do homem a primeira gargalhada. Quanto mais ria, mais fraco se sentia. Tanto riu, que no fim perdeu todas as suas forças e caiu desmaiado.
Quando se soube na aldeia, houve fúria. Os guerreiros queimaram um montão de folhas secas na gruta dos morcegos e fecharam a entrada.
Depois, discutiram. Os guerreiros resolveram que o riso fosse usado somente pelas mulheres e as crianças.
Eduardo Galeano, Memória do Fogo I - Os nascimentos.
[Fonte: Claude Lévi-Strauss. Lo crudo e lo cocido. (MItologicas, I). México, FDE, 1978.]
terça-feira, maio 22, 2007
De um irlandês genial
Dedico ao amigo-irmão Jonas, valente sempre.
"Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquetipo qualquer, mas pela pupila. Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero meu avesso. Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim. Para isso, só sendo louco. Quero-os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta. Não quero só o ombro ou o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice. Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto. E velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou. Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril".
Oscar Wilde
domingo, maio 06, 2007
Os filhos
Meus olhos se transformaram em cachoeira nas últimas frases. Comoção mista de alegria, surpresa, tristeza e vontade de ter uma criança pra dar o carinho de pai. Até hoje, me emociono a cada vez que releio.
Ontem conversei rápido, num chat, com Fábio Marcelo, cearense que mora em Palmas(TO) há mais de década. Estudamos no segundo ano do Lourenço Filho, em Fortaleza, 1993. Mantivemos contato, embora com alguns hiatos no caminho, e a amizade firme. Fábio é daqueles amigos cuja lembrança me deixa leve, pelo bom humor, sinceridade e serenidade. O contato é pequeno, mas a admiração - mútua, tenho certeza - é grande.
Tem duas paixões na vida: Cristiane, esposa, e a filha Giovana. Na rápida conversa ontem, ele me deu uma notícia que vale uma vida, literalmente. Nascida em setembro de 2006, com síndrome de Down, Giovana tinha um problema no coração. Numa cirurgia delicada, realizada no Hospital do Coração, em São Paulo, o problema foi corrigido e Giovana não corre mais risco de vida. Acordei e essa imagem - a felicidade sem tamanho do Fábio e sua família - veio à mente e lembrei desse texto, que dedico a eles.
Os filhos
Há onze anos, em Montevidéu, eu estava esperando Florência na porta de casa. Ela era muito pequena: caminhava como um ursinho. Eu a encontrava pouco. Ficava no jornal até qualquer hora e pela manhã trabalhava na Universidade. Beijava-a adormecida; às vezes levava chocolate ou brinquedos para ela.
A mãe não estava, aquela tarde, e eu esperava na porta o ônibus que trazia Florência do jardim-de-infância. Chegou muito triste. No elevador fez beicinho. Depois deixou que o leite esfriasse na xícara. Olhava o chão.
Sentei-a em meus joelhos e pedi que me contasse. Ela negou com a cabeça. Acariciei-a, beijei sua testa. Deixou escapar uma lágrima. Com o lenço sequei sua cara e assoei seu nariz. Então, pedi outra vez:
- Vamos, conta.
Contou-me que sua melhor amiga tinha dito: "Eu não gosto mais de você". Choramos juntos, os dois abraçados, ali na cadeira.
Eu sentia as mágoas que Florência ia sofrer pelos anos afora e quisera que Deus existisse e não fosse surdo, para poder rogar que me desse toda a dor que tinha reservado para ela.
Eduardo Galeano, Dias e noites de amor e de guerra.
O guayacán
Dedico o texto abaixo à jovem Guaia, estudante e militante da UnB.
O guayacán
Andava em busca de água uma moça do povo dos nivakle, quando encontrou-se com uma árvore fornida, Nasuk, o guayacán, e sentiu-se chamada. Abraçou seu tronco firme, apertando-o com todo o corpo, e cravou suas unhas na casca. A árvore sangrou. Ao despedir-se, ela falou:
- Como eu gostaria, Nasuk, que fosses homem!
E o guayacán fez-se homem e foi buscá-la. Quando a encontrou, mostrou-lhe as costas arranhadas e estendeu-se ao seu lado.
Eduardo Galeano, Memória do Fogo I - Os nascimentos.
(Fonte: Roa Bastos, Augusto (comp.), Las culturas condenadas, México, Siglo XXI, 1978).
quinta-feira, maio 03, 2007
A linguagem
O poder da ideologia é exatamente esse. Mudar a forma de pensar da sociedade. O primeiro passo é dominar a linguagem. Controlar o ato arbitrário de dar nome às coisas e aos fatos. Chamar de guerra a invasão de um país, como ocorreu no Iraque e Afeganistão, só para reduzir a lista aos mais recentes. Classificar de baderna ou até de terrorismo as ações políticas reivindicatórias de direitos, como a nossa grande (e fascista) mídia faz com os movimentos sociais.
Galeano fala melhor sobre isso. Ofereço à amiga Natasha, (quase) nutricionista que não conhecia Galeano, mas se interessa pelo desmascaramento da hipocrisia que nos aprisiona.
A linguagem/1
As empresas multinacionais são assim chamadas porque operam em muitos países ao mesmo tempo, mas pertencem a poucos países que monopolizam a riqueza, o poder político, militar e cultural, o conhecimento científico e a alta tecnologia. As dez maiores multinacionais somam atualmente uma receita maior do que a de cem países juntos.
Países em desenvolvimento é o nome pelo qual os entendidos designam os países subordinados ao desenvolvimento alheio. Segundo as Nações Unidas, os países em desenvolvimento enviam aos países desenvolvidos, através de desiguais relações comerciais e financeiras, dez vezes mais dinheiro do que aquele que recebem através da ajuda externa.
Ajuda externa é o nome do impostinho que o vício paga à virtude nas relações internacionais. A ajuda externa é distribuída de tal maneira que, em regra, confirma a injustiça, raramente a contradiz. A África negra, em 1995, acumulava cerca de setenta e cinco por cento dos casos de Aids no mundo, mas recebia só três por cento dos fundos distribuídos pelos organismos internacionais para a prevenção da peste.
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A linguagem/2
Em 1995, a imprensa argentina revelou que alguns diretores do Banco da Nação tinham recebido trinta e sete milhões de dólares da empresa norte-americana IBM, em troca de uma contratação de serviços cotados 120 milhões de dólares acima do preço normal.
Três anos depois, esses diretores do banco estatal reconheceram ter embolsado e depositado na Suíça tais vinténs, mas tiveram o bom gosto de evitar a palavra suborno ou a grosseira expressão popular coima: um deles usou a palavra gratificação, outro disse que era uma gentileza e o mais delicado explicou que se tratava de um reconhecimento da alegria da IBM.
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A linguagem/3
Na era virotiana, era proibido fazer menção às calças na presença de uma senhorita. Hoje em dia, não fica bem dizer certas coisas perante a opinião pública:
o capitalismo exibe o nome artístico de economia de mercado;
o imperialismo se chama globalização;
as vítimas do imperialismo se chamam países em vias de desenvolvimento, que é como chamar meninos aos anões;
o oportunismo se chama pragmatismo;
a traição se chama realismo;
os pobres se chamam carentes, ou carenciados, ou pessoas de escassos recursos;
a expulsão dos meninos pobres do sistema educativo é conhecida pelo nome de deserção escolar;
o direito do patrão despedir o trabalhador sem indenização nem explicação se chama flexibilização do mercado de trabalho;
a linguagem oficial reconhece os direitos das mulheres entre os direitos das minorias, como se a metade masculina da humanidade fosse a maioria;
em lugar de ditadura militar, diz-se processo;
as torturas são chamadas constrangimentos ilegais ou também pressões físicas e psicológicas;
quando os ladrões são de boa família, não são ladrões, são cleptomaníacos.
Eduardo Galeano. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso.
segunda-feira, abril 16, 2007
Galeano sobre Sebastião Salgado
Em "Nós dizemos não", há um capítulo especial para este fotógrafo brasileiro que ganhou o mundo, sobretudo o mundo dos de baixo. Quem quiser ver as suas fotos, basta passar por aqui: http://www.terra.com.br/sebastiaosalgado
Seguem alguns trechos sextraído da obra acima. Dedico à Cynthia, querida pernambucana que está entrando no mundo do Galeano.
*****
"A fome se parece com o homem que a fome que mata. O homem se parece com a árvore que o homem mata. As árvores tem braços e as pessoas, ramos. Corpos esquálidos, ressecados: árvores feitas de ossos e gente feita de nós e raízes que se retorcem ao sol. Nem as árvores nem as pessoas têm idade. Todos nasceram há milhares de anos, quem saberá quantos? E estão em pé, inexplicavelmente em pé, debaixo do céu que os desampara.
[...]
Quando a imagem emerge das águas do revelador e a luz se fixa em sombra para sempre, há um instante único que se desprende do tempo e se converte em sempre. Estas fotos sobrviverão a seus protagonistas, e a seu autor, para dar testemunho da despida verdade do mundo e de seu oculto fulgor. A câmara de Salgado se move na violenta escuridão, buscando luz, caçando luz. A luz cai do céu ou sobe denós? Nas fotos, esse instante de luz presa, essa faísca, nos revela o que não se vê, ou o que se vê mas não se nota: uma presença inadvertida, uma poderosa ausência. Ela nos avisa que a dor de viver e a tragédia de morrer escondem, em seu interior, uma magia poderosa, um luminoso mistério que redime a aventura humana no mundo.
[...]
As fotografias de Salgado oferecem um retrato múltiplo da dor humana. Ao mesmo tempo, nos convidam a celebrar a dignidade humana. São de uma franqueza brutal, estas imagens de fome e de pena, e no entanto têm respeito e pudor. Nada a ver com o turismo da miséria: estes trabalhos não violam a alma humana, mas a penetram para revelá-la. Às vezes Salgado mostra esqueletos, quase cadáveres, e a dignidade é a última coisa que lhes resta. Foram despojados de tudo, mas têm dignidade. Aí está a fonte de sua inexplicável beleza. Não são macabros, obscenos exibicionismos da miséria. Aqui existe poesia do horror, porque existe sentido da honra.
[...]
Salgado fotografa pessoas. Os fotógrafos passageiros fotografam fantasmas.
Convertida em objeto de consumo, a miséria dá prazer mórbido e muito dinheiro. No mercado da opulência, a miséria é uma mercadoria bem cotada.
Os fotógrafos da sociedade de consumo chegam perto mas não entram. Em fugazes visitas aos cenários do desespero ou da violência, descem do avião dou do helicóptero, apertam o botão, explode o fulgor do flash: eles fuzilam e fogem. Olharam sem ver e suas imagens não dizem nada. Frente a essas fotos pusilânimes, sujas de horror ou de sangue, os afortunados do mundo podem derramar uma lágrima de crocodilo, uma moeda, uma palavra piedosa, sem que nada mude de lugar na ordem de seu universo. Contemplando esses farrapos de pele escura, esquecidos por Deus e mijados pelos cães, qualquer nulidade se felicita intimamente: a vida não me tratou tão mal, afinal, se me comparar com isso aí. O inferno serve para confirmar as virtudes do Paraíso.
A caridade, vertical, humilha. A solidariedade, horizontal, ajuda. Salgado fotografa de dentro, solidariamente. Para fotografar a fome no deserto do Sael, ficou trabalhando durante 15 meses no lugar. Para reunir um punhado de fotos da América Latina, viajou sete anos.
[...]
Salgado é brasileiro. Quantos o desenvolvimento desenvolve no Brasil? As estatísticas registraram índices espetaculares de crescimento econômico nestas últimas três décadas, e sobretudo nos longos anos da ditadura militar. Mas em 1960 um em cada três brasileiros estava desnutrido. Agora, dois em cada três. Existem 17 milhões de crianças abandonadas. Em cada 10 crianças que morrem, a fome mata sete. O Brasil é o quarto exportador mundial de alimentos, o quinto país do mundo em superfície e o sexto em fome."
(1989)
Eduardo Galeano, Nós dizemos não.
quarta-feira, abril 04, 2007
Elas
A função tradicional: a mulher é filha devota, abnegada esposa, mãe sacrificada, viúva exemplar. Ela obedece, decora, consola e cala. Na história oficial, esta sombra fiel só merece silêncio. No máximo, outorga-se uma ou outra menção às senhores dos próceres. Mas na história real, outra mulher surge entre os barrotes da gaiola. Às vezes, não há mais remédio a não ser reconhecer a sua existência. É o caso de sóror Juana Ines de la Cruz, que nem ela própria pôde evitar tão alto e perturbador talento, ou Manuela Sáenz e sua vida fulgurante.
Mas, isso sim: nada se diz, nem de passagem, das capitãs negras ou índias que propiciaram tremendas tundas às tropas coloniais antes das guerras de independência. Em honrosa exceção a esta lei do silêncio, a Jamaica reconheceu Nanny como heroína nacional: Nanny, a escrava bravia, metade mulher e metade deusa, que querendo liberdade encabeçou os negros fugitivos de Barlovento e humilhou o exército inglês, há dois séculos e meio.
Eduardo Galeano, Nós dizemos não.
PS: Dedicado à querida Gabi, autêntica representante da TFM (risos), que muito tem me escutado e me falado.
quinta-feira, fevereiro 01, 2007
O culpado
Eu me declaro culpado de não ter
feito com estas mãos que me deram,
uma vassoura.
Por que não fiz uma vassoura?
Por que me deram mãos?
Para que me serviram
se só vi o rumor do cereal,
se só tive ouvidos para o vento
e não recolhi o fio
da vassoura, verde ainda na terra,
e não pus para secar os talos ternos
e não os pude unir
num feixe áureo
e não juntei um caniço de madeira
à saia amarela até dar uma vassoura aos caminhos?
Assim foi:
não sei como
me passou a vida
sem aprender, sem ver,
sem recolher e unir
os elementos.
Nesta hora não nego
que tive tempo,
tempo,
mas não tive mãos,
e assim, como podia
aspirar com razão à grandeza
se nunca fui capaz
de fazer
uma vassoura,
uma só,
uma?
domingo, janeiro 21, 2007
O assistencialismo
O filósofo argentino Tato Bores, que atuava como cômico, soube formular esta doutrina muito antes de que os ideólogos a promovessem, os tecnocratas a implementassem e os governos a adotassem no chamado terceiro mundo:
— Vamos dar milho aos aposentados - aconselhou Dom Tato — ao invés de dá-lo às pombas.
A santa mais chorada do fim do século, a princesa Diana, encontrou sua vocação na caridade, depois de ter sido abandonada pela mãe, atormentada pela sogra, enganada pelo marido e traída pelos amantes. Quando morreu, Diana presidia oitenta e uma organizações de caridade pública. Se estivesse viva, poderia muito bem assumir o Ministério da Economia de qualquer governo do sul do mundo. Por que não? Afinal, a caridade consola, mas não questiona.
— Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo - disse o arcebispo brasileiro Hélder Câmara. — E quando pergunto por que eles não têm comida, me chamam de comunista.
Diferentemente da solidariedade, que é horizontal e praticada de igual para igual, a caridade é praticada de cima para baixo, humilha quem a recebe e jamais altera um milímetro as relações de poder: na melhor das hipóteses, um dia poderá haver justiça, mas lá no céu. Aqui na terra, a caridade não perturba a injustiça. Só se propõe a disfarçá-la.
Eduardo Galeano, De Pernas pro ar (a escola do mundo ao avesso).
quarta-feira, janeiro 10, 2007
A autoridade
A autoridade
Em épocas remotas, as mulheres se sentavam na proa das canoas e os homens na popa. As mulheres caçavam e pescavam. Elas saíam das aldeias e voltavam quando podiam ou queriam. Os homens montavam as choças, preparavam a comida, mantinham acesas as fogueiras contra o frio, cuidavam dos filhos e curtiam as peles de abrigo.
Assim era a vida entre os índios onas e os yaganes, na Terra do Fogo, até que um dia os homens mataram todas as mulheres e puseram as máscaras que as mulheres tinham inventado para aterrorizá-los.
Somente as meninas recém-nascidas se salvaram do extermínio. Enquanto elas cresciam, os assassinos lhes diziam e repetiam que servir aos homens era seu destino. Elas acreditaram. Também acreditaram suas filhas e as filhas de suas filhas.
Eduardo Galeano, Memória do Fogo I - Os nascimentos. Fontes:
- Plath, Oreste. Geografía del mito y la legenda chilenos. Santiago del Chile, Nascimentos, 1973.
- Harris, Olivia, y Young, Kate (Recompilación). Antropología y feminismo. Barcelona, Anagrama, 1973.
PS: Abraço à amiga e companheira de luta Oona, cuja curiosidade me lembrou de colocar a referência de onde o Galeano se inspirou para conceber o texto. Vou incluir nos posts anteriores também, onde houver referência explícita.
quarta-feira, janeiro 03, 2007
A meu pai
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: Me ajuda a olhar!
Eduardo Galeano - O livro dos abraços
Dedicado a meu pai, Rogério, que completa hoje 57 anos bem vividos e melhor ainda ensinados e aprendidos.
segunda-feira, janeiro 01, 2007
O amor
Rogério Tomaz Jr.
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O amor
Na selva amazônica a primeira mulher e o primeiro homem se olharam com curiosidade. Era estranho o que tinham entre as pernas.
- Te cortaram? - perguntou o homem.
- Não - disse ela - Sempre fui assim.
Ele examinou-a de perto. Coçou a cabeça. Ali havia uma chaga aberta. Disse:
- Não comas mandioca, nem bananas, e nenhuma fruta que se abra ao amanhecer. Eu te curarei. Deita na rede, e descansa.
Ela obedeceu. Com paciência bebeu os mingaus de ervas e se deixou aplicar as pomadas e os ungüentos. Tinha de apertar os dentes para não rir, quando ele dizia:
- Não te preocupes.
Ela gostava da brincadeira, embora começasse a se cansar de viver em jejum, estendida em uma rede. A memória das frutas enchia sua boca de água.
Uma tarde o homem chegou correndo através da floresta. Dava saltos de euforia e gritava:
- Encontrei! Encontrei!
Acabava de ver o macaco curando a macada na copa de uma árvore.
- É assim - disse o homem, aproximando-se da mulher.
Quando acabou o longo abraço, um aroma espesso, de flores e frutas, invadiu o ar. Dos corpos, que jaziam juntos, se desprendiam vapores e fulgores jamais vistos, e era tanta a formosura que os sóis e os deuses morriam de vergonha.
Eduardo Galeano, Memória do Fogo I - Os nascimentos